Gosto de ressaca na boca, tudo escuro, dia quente, virei e peguei o celular ao lado pra ver o horário, a iluminação cega meus olhos, é manhã, ou melhor, é tarde. Coloco meus pés no chão e não consigo sustentar o peso do meu próprio corpo, caminho dois passos a frente e volto três passos a trás como se eu tivesse esquecido algo, como quem passa a mão no bolso e confere se as chaves e os documentos ainda estão lá. O que eu perdi nesse caminho? Me enrolo em meus pés, tenciono cair e me arrasto até o banheiro, me olho no espelho e tento procurar lembranças da noite anterior, um bar, cervejas, riso alto, beijos, música... Esfrego a mão esquerda na nuca e entre meus cabelos, cheiro de cigarro na camisa, corpo pesado, dor no peito, como cheguei até aqui? Declamei em voz alta a letra de uma música ontem pra um amigo no último buteco, em que fomos convidados a sair, não era love song, era porrada no estômago, o eu lírico era alguém como eu, que acordava pela manhã via a casa bagunçada e lembrava que as garrafas de álcool espalhadas lembravam fases ruins da vida. Há quanto tempo estou vivendo esse momento ruim? Não era só um mal tempo, a tempestade não iria passar? Tento me concentrar no fato de que preciso estar aqui, mãos negras não arrebentaram grilhões para que a minha vida fosse dissolvida junto ao álcool, de maneira a não lembrar quem eu fui ou não saber o que estou fazendo aqui. Porra, é esse deslocamento, é esse descentramento da existência, eu não sou desse lugar, mano, eu sei disso. Minha vó nasceu no Pernambuco e esses dias, eu liguei pra ela e disse: "Vó, me conta sua história." E a minha avó disse: "Minha filha, eu não sei contar história..." Desolada, eu disse: “Mãe, minha vó disse que não sabe contar história”, minha mãe respondeu sem pressa: “A gente é uma família sem história”. Desde então, eu tenho procurado conversar mais com minha vó do que visitar banheiros de boates. Abri a torneira da pia, molhei minhas mãos e joguei água no meu rosto, lembrei dos meus dedos molhados com cheiro de buceta depois daqueles dez minutos de foda rápida interrompida, em que estive contra a porta daquele banheiro imundo, somos tão jovens e qualquer beco escuro parece ser viável para concretização dos nossos desejos libidinosos de bêbada. A moça era linda, tinha um cabelo parecido com o meu, sorriso tímido e foi ela quem teve a iniciativa do primeiro beijo, a conheci naquele dia, disse que estudava música e que estava de passagem. Afinal, somos todos pessoas passando… Com sabonete líquido barato lavei minha cara preta e sem vergonha, escovei meus dentes com aquela escova que precisava ser trocada há tempos, cerdas velhas em que cada fio possuía uma direção própria, mas eu só lembrava de trocá-los, quando chegava em casa à noite ou no dia seguinte pela manhã. Uma característica minha é sempre adiar as coisas, inclusive a hora de ir embora do bar, era apenas uma cerveja, sabe? Eu chegaria em casa por volta das 23h da noite no máximo, e cá estou eu pedindo um Uber na madrugada, só que nessa cidade nada funciona, eu odeio essa cidade, eu odeio estar aqui, com quase vinte minutos de tentativa de chamar um carro num aplicativo, eu entro no carro, o motorista faz uma rota alternativa e eu não tenho nem condições de fazer reivindicações, porque meu corpo está mole, minha voz nao sai. Ligo o chuveiro e escuto aquele barulho da água cair no chão, coloco meus pés embaixo do chuveiro sinto a temperatura da água, o chuveiro elétrico queimou há anos e meu pai nunca trocou, disse que gastávamos energia demais ao usar água quente mesmo no verão, depois de todo o meu corpo debaixo do chuveiro, eu tento eu tento sentir o gosto da água com minha língua e busquei na minha memória qualquer narrativa coerente que consiga dar conta de mim. Me deparo com o fato de que a toalha não está no banheiro e caminhei nua pela casa e ninguém parece estar nela, o silêncio me diz isso, ninguém gritou comigo durante os quinze minutos no banho, abri a geladeira e tomei água na garrafa, minha mãe iria detestar me ver fazendo isso, nisso tudo eu penso “quantas garrafas de cerveja é preciso tomar para que a gente venha a pensar em parar?”, eu detesto ressaca moral e essa impertinência que ela possui em dizer o que eu deveria ter feito e o que eu não fiz. Café forte, uma mentira que disseram que cura ressaca, eu li na internet que o ideal é hidratar o corpo, café agride o estômago, mas como começar o dia sem antes tomar um copo de café? Abro as notificações do celular e vejo: “Precisamos passar o projeto para o papel, estamos perdendo muito tempo nisso”, “Acho que falta um pouco mais de comprometimento dos envolvidos com a reunião”, “O prazo é até segunda-feira, não se esqueça”. Puta que pariu, que desgraça, 30 reais em uma viagem de Uber, porque aquele desgraçado tirou a rota do cu e eu não consegui faz nada e o pior é quem nem consigo reclamar, porque meu celular ficou descarregado e foi o amigo do bar que pediu o carro para mim!!! O saldo de uma noite nem sempre é o que a gente consegue pagar.
Comentários
Postar um comentário